Outro dia cruzei com uma propaganda de crédito da Nubank em que uma mulher tem um controle remoto que lhe dá poderes mágicos: com um clique, troca-se um tênis velho por um novo, uma esteira de corrida brota do chão e seu filho entediado vê uma cadeira se transformar em patinete. Um clique simples, limpo, sem maiores consequências além de uma gratificação imediata (e uma música empolgante no fundo).
O problema é: o controle remoto é o acesso a empréstimos e ao cartão de crédito da NuBank. Aí não teve jeito, o assunto dessa edição teve que ser esse mesmo.
Hoje, falamos sobre a psicologia por trás das linhas de crédito.
Tipo um conto de fadas
Estamos observando um nova onda de incentivo ao uso dos cartões de crédito em uma inteligente rede de vantagens duvidosas. Salas VIP, cashback, milhas… Certamente você ouviu alguém falando sobre isso recentemente. A “matemática” é tentadora, basta maximizar o uso do crédito que benefícios mirabolantes aparecem com “gastos que você teria de qualquer forma”; uma proposta aparentemente tão boa que parece termos entrado num conto de fadas.
Mas os bancos não caem nessa fantasia porque eles sabem muito bem que existem fatores psicológicos que entram nessa conta e que mudam o resultado final: segundo uma pesquisa do MIT, o uso de cartões de crédito provoca uma ativação cerebral distinta no sistema de recompensas que aquela observada no uso do dinheiro. Estamos falando de vieses e mecanismos psicológicos que nos levam a fazer compras maiores, estar dispostos a pagar mais caro, comprar itens mais supérfluos e usar o dinheiro de forma menos planejada quando estamos com o cartão de crédito. Pra resumir, tendemos a gastar muito mais.
Na propaganda da NuBank é fácil perceber isso. O que se observa é a aquisição fácil, imediata, sem contrapartidas negativas e francamente irrefletida de produtos variados, tudo isso sem sequer uma moeda ou cédula passar pela mão da protagonista e fazê-la ter o desconforto de ver seu dinheiro indo embora. Convenhamos, é realmente tentador.
Não é à toa que o Brasil é um país de superendividados, com 70 milhões de negativados e quase 27% da renda das famílias brasileiras comprometida com pagamento de dívidas, a maior parte relacionada a consumo. Assim como não é uma coincidência que hoje há duas vezes mais cartões do que pessoas economicamente ativas no Brasil e que, em relação ao PIB, o volume de transações com cartões de crédito aqui é quase o dobro do que nos EUA. É claro que o fenômeno do endividamento é bem mais complexo que isso, mas é inegável o papel que os cartões de crédito desempenham nesse contexto.
Levamos essa propaganda para discussão no nosso grupo de WhatsApp para psicólogos e tivemos um papo muito bom por lá. Algumas falas foram:
“Basta querer, apertar um botão e pronto! Tipo fada madrinha. Pensa isso no imaginário das pessoas? Se nós que estamos atentos a essa sedução e buscando ter um pensamento crítico já é difícil não se envolver, imagina as pessoas que estão vivendo no piloto automático?”
“Essas promessas milagrosas sobre o uso do dinheiro, do acesso fácil ao crédito e aos cartões de crédito sempre existiram nos comerciais, porém tínhamos de aguardar o intervalo da novela para assisti-los. A diferença para os tempos de hoje é que, além de não mais precisar do cartão físico (porque basta um clique na tela do cel para acessar um app), tudo pipoca repentinamente e massivamente na sua frente até sem ter sido solicitado. Outra diferença é que não há uma discriminação clara entre o que é real e o fantasioso, entre o imaginário e o paupável/ concreto, e que, com certeza, interfere nas questões psíquicas do uso do dinheiro.”
“Mantém a ideia de que não há a contrapartida do "esforço" da aquisição do dinheiro (pelo trabalho, por exemplo) como uma troca para manter as trocas (dos objetos). Não há frustrações, não há esperas, um imediatismo doentio para os objetos, que tende a se estender para as relações humanas e gerar ainda mais conflitos.”
Varinhas mágicas
Tudo isso nos leva a um ponto importante: os instrumentos de pagamento não são mecanismos neutros. O dinheiro físico nos influencia de uma maneira diferente do cartão de crédito, o PIX traz ativações cerebrais distintas que um cartão de débito, e em um mundo onde o dinheiro é cada vez mais virtual é preciso estar muito atento a isso.
Sabemos que a perda da fisicalidade das cédulas tem um preço: é mais fácil gastar mais dinheiro (inclusive aquele que a gente não tem) quando o pagamento é feito com a varinha mágica do cartão. Você insere ou aproxima, a maquininha faz um “pib” e tudo segue como antes; o cartão de crédito é mesmo como uma fada madrinha.
As estratégias bancárias estão mais sofisticadas do que antes e se tem um pessoal que está acompanhando as pesquisas em neuroeconomia, finanças comportamentais e psicologia financeira são eles; ou seja, eles sabem muito bem o impacto que um cartão de crédito tem sobre nós e se utilizam do conhecimento dessas áreas para construir um sistema que nem sempre beneficia a todos nós.
Isso significa que nossa autonomia financeira exige cada vez mais um bom conhecimento de como nossa cabeça e nossas emoções funcionam com o dinheiro, além de medidas públicas regulatórias que prezem mais pelo bem-estar do consumidor que pelo lucro bancário e de outras instituições.
Bem, nossa missão aqui é exatamente fornecer esse tipo de conhecimento, então antes de partir para uma recomendação final, deixamos dois convites:
Se você for psicólogo, nosso grupo de WhatsApp segue firme e fecundo. Um espaço para aprendizado e aprofundamento em psicologia do dinheiro e fortalecimento do seu trabalho. Para entrar, basta clicar aqui, vai ser ótimo ter você com a gente!
A lista de espera para a próxima turma do Programa Autodescoberta Financeira está aberta. Temos trabalhado bastante na reformulação do PAF, que vai ter uma cara e uma estrutura nova para te apoiar ainda mais a construir uma vida financeira saudável. Entre na lista de espera clicando aqui.
Pra fechar, deixamos um vídeo que compartilharam no grupo de WhatsApp e o comentário da pessoa que o trouxe: um curta impactante de Steve Cutts (duração: 4’16”).
“Esse curta do Steve Cutts foi tão assertivo, me lembrei dele vendo a publicidade do Nubank. Inclusive, essa abordagem não é novidade, mas um elemento interessante está atrelado à nossa relação com o tempo. Com tanta velocidade, esperar é um sacrifício sentido e estimulado fulltime pelos algoritimos on e off nas nossas vidas…”
O que ele te fez pensar? Fala pra gente aqui nos comentários!
Um abraço,
Equipe Psicologia e Dinheiro
Incrível como nossa tomada de decisão financeira é impactada de formas diferentes a depender do meio de pagamento escolhido. Preocupante e assustador estar vulnerável a esse contexto. Fundamental entender como se estabelece nossa relação com o dinheiro e o que buscamos preencher quando o utilizamos como meio de compensação. Adorei o curta compartilhado, assim como os dados e a reflexão trazida por essa edição. Parabéns e obrigada sempre!